Decorria
o mês de Maio, primeira quinzena, por sinal, não muito chuvoso, talvez por ser
ano bissexto, já pairava no ar o cheiro característico do estrume da loja das
vacas, ao mesmo tempo que, aqui e ali, se ouvia o cantar do carro das vacas, tal
era a “muleta” carrada de estrume colocado nas caniças (cantar para 23 montes),
assim como se ouvia uma ou outro brado “laaaavroooooooooooouuuuu “,
característico do findar de uma vessada.
O quinto mês do ano é, por excelência, na nossa
zona o mês da azáfama das vessadas. Uns de manhã, outros de tarde, uns com mais
ou menos pessoal, lá vão lavrando a terra a fim de fazer as suas sementeiras
(plantar batatas, semear o milho, feijões, linho, dispor couves, e os demais
produtos hortícolas - cebolo, alface, tomatas…).
Vive-se na aldeia, não um regime comunitário
propriamente dito, mas sim o de entre ajuda, isto é, serviço paga serviço
(retada), quer seja ou não da mesma natureza.
O Tio Aparício, lavrador da terra com alguns
bocados, todos os anos e após concordância dos seus compadres e amigalhaços,
marca para si, o dia da sua grande vessada, para que assim e numa só tarde
torne negras suas propriedades “Eido de Cima”, “Leira do Meio” e “Campo do
Fundo”, anteriormente terras de pasto. Homem, conhecido e estimado na terra,
todos gostam, cada um à sua maneira de comparecer no seu serviço, voltas da
lavoura, independentemente de receberem, posteriormente, retada ou não.
Em casa deste lavrador, tudo era preparado ao
pormenor e com a devida antecedência. O forno cozia o seu alqueire de milho,
desta vez a massa levava uma percentagem maior de centeio para que ficasse mais
saboroso e macio. À meia pipa faltava um almude. O fiel amigo, bacalhau, já
estava de molho há dias. As azeitonas, já estavam curtidas. As enxadas,
ganchos, picareta e engaço, forquilha (forcalha) e foice, foram devidamente,
encabadas, para suportarem o esforço de quem lhes quiser dar uso.
Dado que os palmos de terra ainda são extensos, o
Sr. Aparício e filhos, já tinham limpo, as bordas, os regos, os cantos e
cômoros (combros), feito os cadabulhos (área de terreno que se lavrava primeiro
e perpendicular ao rego principal, com uma largura adequado que desse para as
vacas darem a volta e o “lavardor” virar o arado e voltarem ao rego), espalhado
o estrume, quer o da meda, pois este ano na loja não havia muito, para isso
contribuiu a falta de bezerros e ajeitados os caminhos e portais, para que o
acesso às propriedades ficasse facilitado. Serviço feito directamente sob a sua
orientação, pois só ele sabe quando e como fazer.
O carro das vacas já estava devidamente
apetrechado com o arado e chave inglesa, a grade, o cambão, o temão, adubos
químicos, cabaça e pipo, cheios com o madurão do ano e roupa de agasalho pois
as tardes ainda eram frias e ao anoitecer eram indispensáveis. Embora os outros
lavradores levassem os seus apetrechos para a faina agrícola, cabe ao dono da
vessada disponibilizar a maior quantidade de utensílios.
Como não podia deixar de ser e a fim de melhor se
aproveitar o tempo, no dia da vessada o jantar , assim se entende por almoço,
foi servido mais cedo e reforçado, isto é, de mais sustento, orelheira cozida,
caldo de feijões com couves, quase que o garfo fica de pé, dada a espessura da
sopa, sendo o presigo (apresigo), massa com feijões. Trata-se de uma refeição
pesada em calorias, para que melhor se poder manusear as alfaias agrícolas e
aguentar a pinga, pois sem ela a enxada não anda. Foi no almoço que Ti
Aparício, deu as orientações sobre o serviço; onde se começava a lavrar, qual o
milho e feijão a lançar à terra, qual o local destinado à plantação de batata,
sua qualidade e quantidade e hora do pão e vinho ao rego…
Findo o
almoço, “apostas” as vacas ao carro, tendo estas também uma manjedoira mais
farta e apropriada ao esforço que iriam despender, Sr. Aparício toma a
dianteira em chamar (guiar as vacas) e lá vai todo prosa de botas novas, pois
os socos nas vessadas não eram muito aconselháveis, com a vara ao ombro, chapéu
a tapar os seus reduzidos cabelos, aproveitava para trautear a canção da “Ó
Laurindinha vem à janela…”.
Chegados à primeira propriedade, “Eeido de Cima”,
“desapostas” as vacas, estas são as primeiras a serem colocados ao arado, por
serem umas vacas grandes, valentes e puxarem direitas. Estas vacas causavam
inveja na aldeia e arredores, além da valentia reconhecida, “ lavravam sem
ninguém diante”, não eram ladras, não saltavam portais, muito mansas (não
escornavam) e qualquer criança as guardava no pasto. Para o Ti Aparício o único
defeito, que elas tinham, era não pegavam muito bem no boi.
Iniciada a lavra, Ti Aparício chama as vacas, sem
que, primeiramente, se benzesse e rezasse, pare si as suas preces. O filho mais
velho, homem conhecedor das lides da lavoira (laboeira), saia à cepa, agarra-se
às rabiças do arado pois seria este, todo o dia, o seu fadário
Assim, com calma e saber, são dados os primeiros
regos.
Embora já tenha chegado uma ou outra pessoa, e
vêem-se outras a caminho, TI Aparício, homem respeitado e respeitador, sempre
bem disposto e tendo, em tempos idos, feito parte da banda musical da
região, atravessado as águas do mar e passado
fronteiras europeias, soltou um dos seus berros característicos e muito
peculiar .
”Óóóóóóóóó povo ingraaaatoo…., vamos lá…vamos
lá…!!!!!!”
A tarde estava solarenga, a aragem que corria não
anunciava geada o lavrado já é bastante, a gente já está composta as juntas de
vacas, soltas, vão andando de lado para lado, ora no lavrado ora no monte
(assim se designa o que falta lavrar) é a hora do Ti Aparício orientar o
serviço para que consiga lavrar os seus bocados e acabar ainda com dia (com de
dia).
Assim, divide o pessoal que ele bem conhece, pois
das lides da lavoira sabe ele, as juntas de vacas, para que se lavre o “Eido do
Meio” e se juntem todos no “Lameiro do Fundo”, por sinal o maior.
Rego após rego, o campo agrícola vai ficando cada
vez mais negro, quer no “Eido de Cima” quer no ”Eido do Meio”. O pessoal vai
cavando a seita, demonstrando a sua agressividade e persistência física, fá-lo
ao correr do rego, ora num sentido, ora noutro, até que encontre o que vem no
sentido oposto, formando assim um par. A distância entre cada par é sensivelmente
igual dada a força do hábito.
Ti Faustino, compadre do Ti Aparício e homem da
lavoira, comprou uma junta de vacas, à pouco tempo e não sendo sua intenção
coloca-las ao arado, nem ao cambão, pois poderiam ficar a contar estrelas, se
isso acontecesse seria o “bombo” da festa, então, colocou-as à grade sendo ele
o “ candeeiro “, enquanto um seu neto vai para o rabo (corda) e assim começa o
seu rumo no aligeirar a terra, pois ao cavar ela fica aos altos e baixos.
Serviço que vai fazer nos três bocados. De realçar que o agradar, embora sendo
serviço leve, era rejeitado por todos, dado que a junta de vacas a utilizar, ou
eram vagarosa, ou era uma vaca e uma toira, duas
toiras a amansar. Era um serviço um pouco ingrato,
se bem que, quase sempre findo o lavrar, ainda era necessário continuar, por
vezes mesmo depois da merenda.
Ti Teodoro, homem de saber e de experiência feita
em todas as vessadas onde ia, cabia-lhe semear o milho e feijão, recorrendo-se
para o efeito do avental de tomentos da Tia Rosa, dona de casa. Ele, passo a
passo lá vai calcorreando terra, sem que, uma vez ou outra e
junto das moçoilas ali presentes atire os gãos de milho contra as pernas
destas, forma de as provocar, ao mesmo tempo que elas, no seu íntimo, se sintam
lisonjeadas com tal procedimento.
Assim, mantido o ritmo e sem canseira, quatro
horas depois, estão lavrados os “Eido de Cima “ e “ Eido do Meio”, juntando-se
agora, todo o pessoal e juntas de vacas, no ”Lameiro do Fundo”. Dado que estão
dados os primeiro regos e como este lameiro é o mais extenso, o pessoal já está
um pouco fatigado é necessário retemperar forças. Assim e sem que o pessoal
saia dos seus lugares é dado “pão e vinho ao rego”, isto é, pão, azeitonas e
vinho. As filhas do Sr. Aparício, moças já feitas, ao longo do rego, passam
pelas pessoas oferecendo pão, azeitonas, enquanto um dos seus netos, ainda
jovem para assumir quaisquer lides da lavoira, leva o pipo de três litros.
É nesta altura o momento ideal para trocar as
vacas do arado. De realçar que algumas pessoas, sem saírem do local, improvisam
o seu próprio banco. Colocando, cada um, o cabo da enxada, junto ao olho da
outra enxada e os cabos servem de assento.
Feita a pousa e tendo-se aconchegado o estômago,
recomeça-se o trabalho, agora um pouco mais penoso, pois o corpo arrefeceu.
Dona Rosa, que trata das lides de casa e tendo a filha mais nova como ajudante,
já tem em seu poder o número de pessoas que andam na sua vessada, para que
assim possa fazer a merenda a sobrar e nunca a faltar.
O dia vai correndo o Sol já está a decair, o
lavrado não é muito dado a extensão do terreno, Ti Aparício, depois de falar
com o compadre Ambrósio, resolve colocar uma junta ao cambão. É neste momento
que chama o Lúcio, filho do Tibúrcio, rapaz, esguio, astuto, vivo e com provas
dadas no tanger as vacas, mantê-las no rego e dar a volta sem que fique
molestado, para que ele vá para o meio das duas juntas, isto é, chamar as do
arado e tanger as do cambão. Este, não muito satisfeito, pois sempre que
aparece lhe toca este serviço, pois uma vez ou outra, já ficou entalado entre
as molhelhas de umas e o rabo de outras. Lúcio lá concordou com a imposição,
outro remédio não tinha, ao mesmo tempo que fica de moral elevada pois é
distinguido com tal mando, na presença de outros da sua idade, presentes.
Com as duas juntas de vacas, a vessada trás outra
animação, Teodoro o tangedor, homem habilidoso e conhecedor quer das voltas da
lavoira, quer de vacas, além de retirar os estrume acumulado momentaneamente no
arado, para que ele não desferre, tem que tanger as vacas de modo que elas se
mantenham no rego e não apertem o Lúcio. Acontece, por vezes, que se as vacas
do arado, não forem valentes, firmes e bem tangidas, leva a que o das rabiças,
se zangue, exalte e desabafe ditos menos próprios, pois vê o seu orgulho de
lavrador ferido, ao mesmo tempo que o pessoal da seita, dele fazem chacota ,não
lhe atribuindo no final o ”ramo de lavrador ”, dito, em forma de recompensa
pelo seu bom desempenho.
O Inesperado aconteceu.
Lá foi bico do arado!!!!
Tudo decorria como planeado e eis que, uma pedra
mais saída e resistente, fez com que se tivesse partido o bico do arado. Ti
Aparício manda o Tibério, rapaz corpulento, possante e vaidoso, buscar o arado
que tinha ficado no ”Eido do Meio”. Este, por suas vez, lá foi e, algum tempo
depois aparece, com ar de poderoso e magnifico, com o arado aos ombros.
Diga-se que um arado pesa próximo a duas arrobas,
porém não é difícil o seu transporte, a melhor maneira de o fazer é aos ombros
e consiste na forma de equilíbrio; bico num ombro, aiveca (abeca) no outro e
rabiças na direcção das costas.
Ti Tonico, homem de ditos, esperto , sempre
atento e calculista, mas não muito trabalhador, ao partir-se do bico do arado,
exclamou:
“Oh Aparício, lá vai o ganho do ano e um alqueire de milho”
Era este por esse meio que se pagava o bico do arado, na loja de ferragens mais
conhecida, permuta de géneros. Leva-se um alqueire de milho e trazia-se o bico
do arado que era de ferro fundido. O bico do arado parte facilmente, pode
acontecer mesmo ao manuseá-lo (mudá-lo de sítio, coloca-lo ou descê-lo do carro
das vacas).
O arado, dada a sua construção e configuração, ora deita a seita para a
direita, ora deita para a esquerda, sendo necessário no fim do rego e ao dar a
volta, o “lavrador” fazer girar a aiveca sobre ela própria, ao mesmo tempo que
coloca um gancho no orifício da própria aiveca, fazendo com que esta se
mantenha firme.
Substituído o arado e
ajustando-se o regulador de profundidade, recorrendo-se à chave inglesa, pois
este arado lavrava um pouco mais alto, a faina continuou, a tarde vai caindo, o
Sol vai desaparecendo e Ti Faustino continua a agradar a terra com a sua junta
de vacas, mas Ti Aparício apercebendo-se que o terreno a agradar é bastante,
chama o Ti Anacleto para que, com as suas vacas, deita mais uma grade o que
aconteceu.
De referir que tinha sido esse o seu trabalho no ”Eido do Meio”. Lúcio continua
no meio das vacas, por mais uns regos, pois já se está quase a chegar à estrema
do lameiro, não se justificando assim, continuar com duas juntas.
Como o “Lameiro do Fundo” não é muito rectangular, a borda de cima começa a ser
feita primeiro. Assim sendo, a cada seita virada mais encurta a distância em
direcção ao fundo e o corte fica mais pequeno.
Ti Aparício, aproveita para, no lavrado, plantar dois cestos de batas da
“Kenebec” a terra não é muito apropriada para este tipo de renovo, dado que
soprem mais em terras menos húmidas.
Mais três/quatro seitas, a vessada termina e eis que, sem qualquer linha de
orientação ou combinação, o pessoal em uníssono gritou:
“ Laaaavrrrrooouuuu …….. Laaaavvvvroooooouuuuuu”.
Tia rosa, no lameiro ao lado, único espaço verde e nas toalhas de linho que
reluziam mais pareciam espelhos a reflectir o Sol, já tinha a merenda posta, a
qual transportou no seu encantado e belo, açafate de vimes; bacalhau, uma posta
para cada pessoa, pão, azeitonas, vinho ( garrafão, pipo, e cabaça,). Como o
pessoal estava com cerimónias, talvez devido ao cansaço e mãos não muito limpas
devido à transpiração e algum pó acumulado, embora um ou outro as tivesse
lavado no rego de água, que a centímetros corria, não se chegavam muito à
tolha. Então as filhas da Tia Rosa, andavam de lado para lado com a travessa do
bacalhau, cesta do pãoe alguidar das azeitonas.
E o pessoal lá ia mastigando, sem que, aqui e ali, um ou outro conversasse de
outras vidas e acertassem e/ou comentassem o dia de outra vessada.
Como os da grade ainda não tinham terminado, Tia Rosa, por eles chama:
“ Oh da grade vinde cá … acabai por agora.”
Responderam:
“ É só mais uma volta.”
Minutos
depois estavam todos juntos a saborear a merenda, que bem mereceram.
Corria de mão em mão o garrafão, cabaça e pipo,
mas Ti Tomás não gosta muito de beber pelo pipo, nem pela cabaça isso é para as
mulheres. Segundo ele, ainda não lhe apanhou a manha de beber do pipo e/ou
cabaça, pois é preciso, ao colocar a boca no orifício soprar, ligeiramente,
para que o vinho saísse um pouco mais, caso contrário seriam só lágrimas…
Benjamim, mancebo já apurado para a tropa,
lá teria as suas intenções amorosas e sem que a sua distinta se apercebesse
coloca-lhe no picho, uma espinha de bacalhau que mais parecia uma travessa do
cabelo. Era um meio de se aproximar e de lhe manifestar o seu agrado, mas ela
mostrava-se desinteressada.
Uma ou outra pessoa vai-se levantando, procura a
sua própria ferramenta e abandona o lameiro. Por sua vez, os homens continuam
por mais algum tempo a sua conversa, por vezes já repetida. Tio Aparício para
ele, além do serviço, era dia de por a conversa em dia, sobre a lavoura,
adubos, feiras, compra e venda de gado, crias. Já com o golo a mais do que o
habitual, pede à Tia Rosa os cigarros a fim de ofertar aos seus amigos e
compadres, àqueles que desse vício sofriam, se bem que, ele não tinha isso por
costume.
Tia Rosa ia-se despedindo ora de um, ora de outo
com:
“bem-haja depois lá vamos para as vossas”.
Tio Aparício, continuando na cavaqueira com os
compadres dá a vessada por finda ao mesmo tempo que instrói os de casa para
arrumarem os utensílios, levarem e pensarem o gado, já que as tornas, embelgas,
e volta ao milho faz-se noutro dia ( com o agradar há muito grão de milho, que
fica a descoberto, daí que, depois e com auxilio de um “someto” (pau geralmente
de urze, afiado na ponta e com um punho) se enterram , o suficiente para
germinarem.
De salientar que, na ida para a vessada o pessoal
vai mais individualizado e conta goats, no regresso vêm mais junto, daí que,
embora agastados fisicamente, caminham de espirito altivo e alegre
eventualmente, associado ao calor humano, juventude, companheirismo, estímulo
do dever cumprido ou pingoleta, entoam diversos cânticos; “ Ó Laurindinha….”, Ó
Rita arredonda a saia”… “Ó malhão”….”Ó Manel das rolas..”
Assim, desta maneira eram feitas as vessadas na
minha terra.
(Este texto está publicado em comentário à mensagem, "vamos novamente jonguer as vacas", mas pela sua importância o moderador resolveu publica-lo em poste)
Os nossos agradecimentos ao autor.